sábado, 10 de novembro de 2012

O Sacerdote & O Espiritismo


Por Maria das Graças Cabral

Durante todo o trabalho de sistematização da Doutrina dos Espíritos, Allan Kardec, na condição de Codificador, se disponibilizou de forma efetiva a tirar dúvidas e fazer análises do que se escrevia e/ou falava a respeito do Espiritismo. Nunca deixou de dirimir as dúvidas daqueles que de forma sincera buscavam a compreensão da nova doutrina, estimulando o estudo sério e efetivo, e estabelecendo de forma clara os fundamentos e objetivos da mesma.

Nesse sentido travou vários diálogos com pessoas cujos propósitos eram os mais diversos. Desde os simples “curiosos” aos opositores contumazes. Entretanto, buscava primeiramente “captar” o verdadeiro propósito do inquiridor, pois não perdia seu tempo, com discursos improdutivos.

Na obra intitulada “O que É o Espiritismo”, Kardec tem por objetivo apresentar uma “iniciação preliminar” da Doutrina Espírita, através de respostas a “questões fundamentais” que lhe eram lançadas com frequência.

Daí organiza três capítulos sob a forma de diálogos, com três personalidades que se opõem ao Espiritismo. No primeiro capítulo seu inquiridor é um crítico, no segundo um cético e no terceiro um sacerdote católico.

No presente artigo faremos algumas considerações do diálogo desenvolvido com o personagem religioso, na condição de um dos mais contumazes opositores da Doutrina dos Espíritos, por ver nesta, uma ameaça à sua religião e aos seus dogmas.

Inicialmente Kardec antes de se propor a responder aos questionamentos que seriam feitos pelo sacerdote, deixa claro que não é seu propósito “convertê-lo” às ideias espíritas, acrescentando que o inquiridor terá a liberdade de repudiá-las ou aceitá-las, pois “o Espiritismo não cuida de impor-se a ninguém e que não veio forçar convicções”. (2001: p. 71)

Faz-se por oportuno a transcrição de um pequeno trecho, onde Allan Kardec assim se expressa:

“O Espiritismo não se impõe porque, como disse, respeita a liberdade de consciência. Compreende muito bem, por outro lado, que toda fé imposta é superficial e só oferece aparências de fé; nunca é a fé sincera. Expõe seus princípios aos olhos de toda a gente, de modo que possa cada um formar opinião com conhecimento de causa. Os que aceitam, leigos ou sacerdotes, fazem livremente porque o acham racionais. De nenhuma maneira, porém, abrigamos rancor contra os que não são do nosso parecer. Se existe uma luta aberta entre a Igreja e o Espiritismo, não fomos nós que a provocamos. Disso estamos convencidos”. (2001: p 72)

A partir de tais considerações trava-se um longo diálogo, sincero, às vezes ácido, mas muito esclarecedor para os quiserem adentrar ao estudo da Doutrina Espírita. O religioso de início se coloca asseverando que, “assistindo ao advento da nova doutrina” e sendo sabedor que esta traz princípios que “deve condenar, a Igreja tem certamente o direito de discuti-los e os combater”, prevenindo seus fiéis “contra o que considera errôneo”. (2001: p 72)

Kardec prontamente observa que a Igreja não se ateve apenas aos limites da discussão, mas foi além publicando escritos e fazendo sermões levantando a injúria, a calúnia, perseguindo e desfigurando maliciosamente os princípios da Doutrina. Ao que o sacerdote alega que a Igreja não poderia ser responsabilizada por “alguns membros menos educados”. O Codificador contrapõe “lembrando” que as agressões, calúnias e perseguições não partiram apenas dos fiéis, mas também e principalmente, dos “Príncipes da Igreja”.

Não obstante, o que realmente preocupa ao sacerdote é o fato de o Espiritismo não estar em todos os pontos concorde com a religião católica. A esse respeito, Kardec com muita coerência o adverte que todas as demais religiões podem dizer o mesmo, até porque, dentro das próprias religiões existem as divergências.

No que concerne às cisões que ocorrem no seio das religiões, faz-se por oportuno os esclarecimentos feitos pela professora Maria Ângela Vilhena quando assim se expressa:

“(...) a existência no interior das religiões de todo um complexo de crenças e práticas que guardam entre si maior ou menor grau de semelhanças, proximidades e distanciamentos. Às vezes, quando da predominância da diversidade interna, de afastamentos dos fundamentos tidos por alguns como sendo ortodoxos, formam-se grupos representativos de posturas antagônicas e concorrentes. Pode ocorrer que quando as críticas acirradas vão tornando o diálogo cada vez mais áspero e até mesmo impossível, entre seus membros surjam cismas e rupturas. Essa é uma das razões pelas quais, em situações-limite, das disputas aparecem cisões internas, exclusões e desmembramentos em subgrupos”. (2008: p. 13/14)

E acrescenta adiante:

“Pretende-se, assim, demonstrar que o campo religioso é um campo de disputas não apenas entre diferentes religiões, mas também que no interior da mesma religião formam-se dissensões, grupos disputantes, cada qual imbuído da pretensão da correta interpretação dos princípios doutrinários e práticas a eles correlatas”. (2008: p. 13/14)

Portanto, é fato que as discordâncias e dissenções existem entre as religiões constituídas, e muito comumente dentro de suas próprias hostes.  A título de exemplo a referida autora se reporta ao Judaísmo e suas várias vertentes, como ultra ortodoxa, conservadora, liberal, renovada, mística cabalística. O Budismo tibetano, o taoísta, o movimento Soka-Gakai, ou o da Perfeita Liberdade. O próprio Catolicismo também abriga várias tendências, como a Teologia da Libertação, os padres cantores que optam - segundo as palavras de VILHENA - pelo show-missa. E os Protestantes, que tem os que seguem a Igreja Renascer em Cristo, a Universal do Reino de Deus, ou a Pentecostal Brasil para Cristo. (2008: p. 15)

No que tange ao Espiritismo, preceitua a autora, que se encontram referências, “ao Espiritismo kardecista ortodoxo, ao movimento que alia a Umbanda ao Kardecismo, ou ainda ao Espiritismo catolicizado”. (2008: p. 15)

Diante das observações feitas por Kardec, o religioso prossegue seus questionamentos, pontuando como o “cerne da questão”, o fato de o Espiritismo defender certos conceitos combatidos pela Igreja, como a reencarnação, a presença do homem na Terra antes de Adão; nega a eternidade das penas, a existência do demônio, do purgatório e do fogo do inferno. Vale ressaltar também que a Doutrina dos Espíritos, tira a autoridade dos clérigos para perdoar pecados, pois estabelece que cada um é responsável pelos próprios atos, e não serão palavras ou rituais que irão modificar a situação espiritual de ninguém. (2001: p. 79)

Em resposta a tais argumentos, o Codificador assevera que “há muito tempo essas questões vêm sendo discutidas, e não foi o Espiritismo que as trouxe para o terreno dos debates”. E acrescenta que tais problemas fomentam controvérsias na própria teologia. (2001: p. 79)

Não obstante, o Mestre observa que o que mais importa, independentemente da crença, é que os seres humanos se tornem melhores, pois a prática do bem está pautada numa lei superior.

Daí, Kardec de forma clara e objetiva, que faz parte de sua personalidade e de seu discurso, assim se expressa:

“Creia, se lhe agrada, que não temos senão uma existência corporal. Isto não lhe impedirá de nascer aqui ou em outra parte, à sua revelia, se assim tiver que ser”.

“Creia que o mundo inteiro foi feito em seis vezes vinte e quatro horas, se tal for sua opinião. Isso não impedirá que a Terra ostente escritas em suas camadas geológicas, as provas do contrário”.

“Creia, se lhe apraz, que Josué deteve o movimento do Sol. Isso não impedirá que a Terra gire”.

“Creia que há apenas seis mil anos encontra-se o homem na face da Terra. Por isso, os fatos não serão impossibilitados de provar o absurdo da crença”.

“E que dirá o senhor se, um belo dia, quando menos esperar, a inexorável Geologia vier demonstrar, com vestígios incontestáveis, como já provou tantas outras coisas, a anterioridade do homem”?

“Creia na existência do demônio; creia em tudo o que quiser, se a crença nessas coisas puder torná-lo bondoso, humano e caritativo para com seus semelhantes”. (2001: p. 80)

Pode-se visualizar com que propriedade o Codificador estabelece os fundamentos da Doutrina dos Espíritos. Em seguida discorre resumidamente sobre reencarnação, penas eternas, e demônio, objetivando esclarecer seu interlocutor.

Não obstante, vale pontuar outro aspecto considerado pela Igreja Católica como uma afronta à sua dogmática. Trata-se da questão que se refere à comunicabilidade dos Espíritos.

O sacerdote afirma que a Igreja proíbe as comunicações com os Espíritos dos mortos, por serem contrárias à religião, e por estarem “formalmente” condenadas pelo Evangelho e por Moisés, que pronunciou a “pena de morte”, para aqueles que descumprissem tal determinação.

Kardec começa por esclarecer que a proibição de Moisés, era justificada pela necessidade do legislador hebreu fazer seu povo abandonar os costumes egípcios. Na realidade, as evocações eram meios de adivinhações, explorados pelo charlatanismo e pela superstição. Diante de um povo indisciplinado e endurecido, arraigado às práticas e crenças egípcias, estabeleceu a pena de morte em sua legislação, para que pudesse conter a população e alcançar seus objetivos. (2001: p. 84)

E daí contra argumenta que se a proibição de evocar os mortos procede da Divindade, como estabelece a Igreja, a pena de morte contra os deliquentes, seria também por ela ditada. E acrescenta que “se a Lei de Moisés é para a Igreja artigo de fé sobre certo ponto, por que não seria sobre todos? Por que recorrem a ela quando convém e a desprezam quando não convém? Por que não seguir todas as prescrições, entre as quais a circuncisão, que Jesus sofreu e não aboliu”?

Obviamente, há de se compreender que a Lei Mosaica traz nas tábuas do Sinai, os preceitos morais indestrutíveis. E numa segunda parte a legislação civil, que se adequava aos costumes da época, e do povo, como qualquer outra legislação que disciplina as relações sociais.

Não obstante, Kardec salienta que a Igreja não nega a comunicação dos bons Espíritos, tidos como “santos”, nem dos “demônios”, tão ou mais poderosos que aqueles! Observa-se um contra senso nessa proposição, pois se os que estão no “ápice da bondade” ou no “ápice da maldade” podem se manifestar aos encarnados, o que impediria a todos os outros terem a mesma capacidade e/ou oportunidade? Afinal, não estão todos na mesma condição de Espíritos? Por que essa “lei” só atingiria os extremos?...

Na realidade, assevera o Mestre a esse respeito, que as religiões, supondo-se na posse exclusiva da verdade absoluta, identificam como demoníaca toda e qualquer doutrina que não seja exclusivamente ortodoxa, ao seu ponto de vista...

Aliás, o Codificador de forma exaustiva em várias oportunidades afirma que os Espíritos não vêm para derrogar as religiões. Mas para revelar novas leis da natureza. Acrescenta que os religiosos devem observar se seus artigos de fé, seus dogmas, podem anular uma lei natural que é obra de Deus.

Finalizando, nada melhor do que as orientações do Mestre quando se dirigindo ao seu interlocutor, assevera que a “melhor maneira de uma pessoa adquirir conhecimentos sobre o Espiritismo é estudando a teoria”, pois os fatos virão depois naturalmente, e serão compreendidos.

Afinal, é através das obras propostas por Kardec, que vão desde O Livro dos Espíritos, passando pelo O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno, A Gênese, e A Revista Espírita, que segundo o próprio Codificador “é um curso de aplicação, pelos numerosos exemplos que oferece e os desenvolvimentos que encerra, sobre a parte teórica e a parte experimental”, que poderemos compreender “em parte” a grandiosidade e complexidade que envolve o nosso destino de Espíritos imortais, todos sob o comando de uma Lei Maior, da qual temos apenas uma pálida ideia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

VILHENA, Maria Ângela. Espiritismos – Limiares entre a vida e a morte. Ed. Paulinas. 1ª edição. São Paulo/SP. 2008.

KARDEC, Allan. O Que é o Espiritismo. Ed. LAKE. 26ª edição. São Paulo/SP. 2001.

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