sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Expressão Filosófica do Espiritismo


Por Deolindo Amorim

Disse Allan Kardec que a força do Espiritismo está em sua filosofia, justamente porque faz apelo à razão, ao bom senso. Poder-se-ia estranhar o fato de haver o codificador da Doutrina Espírita dado tanta ênfase à razão, quando se sabe que o seu trabalho começou exatamente pelos fatos mediúnicos. E o Espiritismo realmente apoia-se nos fatos, nas provas, na experiência, como se diz a todo o momento. Mas uma proposição não invalida a outra. A parte experimental ou fenomênica continua a ser indispensável à investigação espírita. Sob este ponto de vista, parece-nos até exagero desprezar inteiramente a parte mediúnica como quem diz: “a época do fenômeno já passou”, não há mais necessidade dos médiuns. Não é bem assim. Os médiuns surgiram ontem e surgem hoje porque são necessários. E não seria possível, em último caso, excluir a mediunidade do Espiritismo e, portanto, acabar definitivamente com as sessões mediúnicas.

FENÔMENOS

O lastro experimental, com a apresentação de fatos comprobatórios, ainda é uma necessidade, pois estamos muito longe, por enquanto, daquele estágio evolutivo em que a mediunidade ficará no puro domínio da intuição, como diz a própria Doutrina. Será uma expressão muito elevada, em função, porém, do tempo e do melhoramento espiritual do ser humano. Claro que a prática mediúnica, como geralmente falamos, precisa de condições básicas: honestidade pessoal, perseverança, lucidez e prudência do verdadeiro espírito científico. A mediunidade exercitada a esmo, embora bem-intencionada, como acontece muitas vezes, tem os seus riscos.
INSUFICIÊNCIA

Então, sem perder de vista o valor do estudo filosófico, a que Allan Kardec atribui influência decisiva, é lógico entender que o aspecto mediúnico sempre teve e tem o seu momento de necessidade e relevância, seja pelo consolo das mensagens, seja pelos elementos de estudo e reflexões que oferece.

Mas, o Espiritismo se contém todo ele no campo mediúnico, conquanto este lhe tenha servido de ponto de partida, como se sabe. O fenômeno por si só não nos levaria a consequências profundas, ou seria apenas objeto de observação ou motivo de deslumbramento, sem a formulação filosófica. Justamente por isso — repetimos Kardec — “a força do Espiritismo está em sua filosofia”. E por que não está no fato mediúnico? Porque o fato prova e convence objetivamente, não há dúvida, porém não elucida os problemas mais graves de nossa vida, por si mesmo, se não tomar a direção filosófica que conduz à inquirição das causas, dos porquês e das consequências.


FILOSOFIA

A comunicação dos espíritos demonstra praticamente a sobrevivência da alma “após a morte”. É o elemento básico. Mas, é preciso partir daí para as indagações que compreendem especialmente o destino humano e as consequências morais do Espiritismo.

A esta altura já é esfera da filosofia e, a força do Espiritismo — não faz mal insistir neste ponto — está exatamente nesse corpo de princípios, em cuja homogeneidade e coerência encontramos respostas às mais complexas e momentosas questões de nossa vida: a existência de Deus, a justiça divina e as desigualdades morais, intelectuais e sociais, livre-arbítrio e determinismo, a reparação do mal pelas provas, o reajuste de compromissos do passado através das experiências reencarnatórias. São temas de reflexão filosófica. Entretanto, a Doutrina estaria incompleta se não decorressem daí as consequências morais com que nos defrontamos a cada passo.

NEUTRALIDADE

Quem, por exemplo, gosta apenas de ver sessões mediúnicas, porque acha interessante ouvir os conselhos dos espíritos ou conversar com os médiuns, mas não vai além deste hábito, que se transforma em rotina com o decorrer do tempo, naturalmente não tem uma visão global do ensino espírita. Conhece o Espiritismo apenas pela parte fenomênica, que é muito rica de lições e sempre tem o que oferecer para estudo e meditação, porém não abre horizonte mais amplo a respeito das leis e causas a que o fenômeno está sujeito. Há pessoas, por exemplo, que se interessam muito pelo lado experimental do Espiritismo e fazem realmente estudos sérios, mas encaram o fenômeno do intercâmbio entre dois mundos com a mesma neutralidade ou frieza com que os especialistas lidam com os fenômenos da física ou da eletrônica, e assim por diante. A preocupação é exclusivamente com o fenômeno puro e simples.

E daí? Que resulta de tudo isso? Sim, o fenômeno da comunicação entre vivos e mortos é neutro até certo ponto, uma vez que sempre ocorreu no mundo, muito antes das civilizações e, portanto, do Espiritismo. E pode ser observado e registrado em ambientes não-espíritas, como também pode ser discutido à luz de critérios diversos, nas áreas da parapsicologia, psiquiatria, antropologia etc., sem nenhuma cogitação quanto às causas e consequências. Se o psiquiatra se volta para a procura da anormalidade, já o antropólogo vê o fenômeno dentro de um contexto cultural sem implicações de ordem transcendental, como se costuma dizer.

CONSEQUÊNCIAS

Quando, porém, o fenômeno está situado no contexto espírita, já não é tão neutro, porque assume um valor moral muito especial e, por isso mesmo, não pode ser considerado indiferentemente, como se estivesse em laboratório de física ou de química. O fato de o espírito entrar em comunicação com o nosso mundo pela via mediúnica, já pressupõe muita responsabilidade para o médium e, também, para quantos tenham de lidar com esse tipo de trabalho.

Há necessidade, portanto, de um preparo moral indispensável. Já se vê que a situação, agora, é bem diferente. E por que, finalmente, o Espiritismo engloba o fato mediúnico numa contextura filosófica de consequências tão acentuadas? Exatamente porque a verificação de que os mortos continuam vivos e vêm até nós, identificando-se, interferindo em nossos atos, “chorando as suas mágoas” ou trazendo alegria e esperança, confirma a tese capital de que a vida continua no tempo e no espaço.


Partimos daí, desse princípio essencial, para a especulação filosófica das origens e do chamado sobrenatural. O próprio impulso da sede de saber naturalmente nos leva a propor questões desta natureza: que significa esse intercâmbio em nossa vida? Qual o ponto inicial, a causa primária dessa força ou dessa inteligência aparentemente misteriosa? Que benefício poderá esse tipo de conhecimento trazer para o homem e a humanidade? Começamos a sentir o conteúdo ético e filosófico do Espiritismo desde o momento em que lhe avaliamos a profundidade e a integridade como Doutrina capaz de corresponder às nossas preocupações com o desconhecido e o nosso próprio destino.

ÉTICA

Mas, a especulação filosófica, embora necessária e valiosa, ainda não é suficiente para atender satisfatoriamente às necessidades do ser humano quando desperta para os problemas espirituais. Torna-se necessário, senão indispensável, além deste passo no conhecimento, procurar as consequências dos princípios espíritas na vivência individual e coletiva. É aí, principalmente, que se sente a força do Espiritismo em sua filosofia, porque:

a.) Em primeiro lugar, abre larga perspectiva à inteligência inquiridora, oferecendo-lhe elementos de convicção acerca da vida futura e de uma justiça superior;
b.) Em segundo lugar, porque, superando as ideias e os hábitos oriundos de escolas ou crenças antigas, renova profundamente a concepção de vida e modifica a posição do homem perante as leis da natureza, perante o próximo, perante a sabedoria divina;
c.) Em terceiro lugar, porque as aplicações dos princípios espíritas fortalecem e esclarecem o sentido claro da Mensagem do Cristo, mostrando-nos que ninguém está perdido, como ninguém é definitivamente irrecuperável.

E assim, compreendemos bem porque Allan Kardec afirmou que “a força do Espiritismo está em sua filosofia.”



Fonte: revista “A Reencarnação”, nº 401 - ano L - outubro de 1984 - órgão de divulgação da Federação Espírita do Rio Grande do Sul.


Deolindo Amorim nasceu na Bahia em 23 de janeiro de 1906 e desencarnou no Rio de Janeiro, em 24 de abril de 1984. É considerado, ao lado de Carlos Imbassahy e Herculano Pires, um dos maiores pensadores espíritas do Brasil. Jornalista, sociólogo, escritor espírita de estilo professoral, extremamente didático e elegante, Deolindo foi um dos maiores divulgadores do Espiritismo como cultura e voltado para a análise de questões da atualidade. Fundou o Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB), foi um dos idealizadores da Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas (Abrajee) e graças ao seu empenho, em conjunto com a Liga Espírita do Brasil, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1949, o II Congresso Espírita Pan-Americano.


Obras: Espiritismo e Criminologia; O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas; Africanismo e Espiritismo; O Espiritismo e os Problemas Humanos; Ideias e Reminiscências Espíritas; Allan Kardec, o Homem e o Meio, dentre outras.

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